Devemos tolerar os intolerantes?
Desde o nascimento do Liberalismo, a ideia de tolerância ocupa lugar central nas discussões da filosofia política. Porém, não é fácil encontrar uma perspectiva conceitual da tolerância. As discussões se ocupam mais em orientar o comportamento das pessoas pelo norte da virtude do tolerar.
Assim, encontramos frequentemente a ideia de tolerância sendo aplicada em diversos aspectos – tolerância religiosa, tolerância cultura, tolerância aplicada a comportamentos, tolerância aplicada a maneiras de falar e expressar. Do mesmo modo, encontramos formas diferentes de não tolerar – deixamos de tolerar comportamentos tidos como ilegais, deixamos de tolerar aquilo que é socialmente censurado.
Por exemplo, a sociedade não tolera o uso de maconha, pois é um comportamento tido como ilegal. Do mesmo modo, não toleramos um homem usar batom, pois é algo socialmente censurado. Mas será que isso é tolerância (ou intolerância)?
O primeiro passo para descobrirmos isso é tentar encontrar um conceito para a tolerância. Na contemporaneidade, o filósofo norte-americano Andrew Jason Cohen tem se ocupado na reflexão do que é tolerância, chegando à seguinte conclusão: a tolerância é uma ação, intencional e por princípios, de um agente que se abstém de interferir na esfera de outro ou de seu comportamento, que se encontra em uma situação de diversidade, onde esse agente acredita que tem o poder de interferir nessa esfera, mas decide por não interferir.
Em outras palavras, a tolerância é para além de uma virtude. Ela é um comportamento intencional, que o sujeito adota em uma situação de diversidade, onde tem o poder de interferir na esfera do outro, mas conscientemente decide não interferir – ele tolera.
Perceba que a tolerância não é desaprovação – não basta que eu veja uma ação e desaprove a mesma para ser considerada uma pessoa tolerante ou intolerante. Tolerância não é suportar ou não gostar. Por exemplo, eu posso desaprovar as pessoas que usam caixas de som altas nas praias, posso achar que essa ação me incomoda, porém, me falta o elemento essencial – a não interferência – posso até me abster de intervir na conduta do agente e continuar ouvindo um som estrondoso de “Coração cachorro”, o hit do verão. Mas que poder eu tenho de intervir ou não no comportamento de outro? Por que a minha concepção de que praia não é lugar de música alta deve sobrepor ao do outro? Isso não é tolerância. É desaprovação, é não suportar, é não gostar. É apenas a minha incapacidade de resignificar comportamentos.
A tolerância é algo que devemos fazer pelas razões certas. A não-interferência deve ter princípios adequados. Seu norte é a diversidade. Como destaca Cohen, Se não houvesse diversidade, não haveria nada a se opor. Se não houvesse nada para se opor, não haveria nada para tolerar. A necessidade de diversidade é a condição para a tolerância.
Assim, parte-se para a segunda premissa desse escrito. Devemos tolerar os intolerantes? Tomo aqui por intolerantes não aqueles que possuem pensamentos diferentes aos meus, porque isso é diversidade. Chamo de intolerante aqueles que não agem intencionalmente e por princípios se abstendo de intervir da esfera do outro. É intolerante, por exemplo, aquele que não reconhece a liberdade de existir do outro. Que, ao invés de se abster de um comportamento, o faz, negando a diversidade que é ínsita à sociedade democrática.
A tolerância é um ato de respeito para com o outro. Se isso é uma premissa, tolerar os intolerantes se torna uma necessidade. Caso contrário, nos tornamos intolerantes, assim como eles. É como a famosa frase atribuída a Voltaire, que provavelmente nunca tenha dito isso, mas sim ser uma façanha de sua biógrafa, a escritora inglesa Evelyn Beatrice Hall: “Eu discordo do que você diz, mas defenderei até a morte o seu direito de dizê-lo”.
Mas um alerta deve ser feito: em uma arena democrática é condição necessária do debate que toleremos os intolerantes. Porém, isso não significa que não possamos tentar persuadi-los a mudar seu posicionamento. Trata-se de um princípio que não atinge o elemento da não interferência, que é pressuposto elementar da tolerância. Na verdade, se manifesta como uma premissa necessária para o exercício da liberdade de expressão: discurso se combate com mais discurso, e não com censura: hate speech, more speech!!!
Profª. da FAP Mariana Oliveira de Sá